segunda-feira, 17 de junho de 2013

O SACRAMENTO DO ALTAR (Parte VI)


 

 

Martinho Lutero e os Primórdios (Escritos de 1517 – 1519)

Quando se estuda este tema em Martinho Lutero deve-se entender que, apesar de toda a herança católica, recebida por ele da Idade Média, a sua fonte doutrinária sobre o Sacramento do Altar não se baseia nisto. Talvez no início da Reforma, ele ainda como um “bom católico” romano não tenha desenvolvido o tema completamente, por este fato, alguns tendem a dizer que Lutero ainda era católico demais. No entanto, toda a sua luta na Reforma, gira em torno do Sacramento do Altar, pois em sua visão, a Santa Ceia é Evangelho, e o Evangelho é de Cristo, ou seja, tudo depende de Cristo e nunca do ser humano. A partir deste conceito, ele então desenvolve todo o programa de Reforma sob o pilar da Justificação pela Fé.[1]

Em 1517, Lutero pregou as suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, dentre estas, destaca-se a tese 62 que diz: “O verdadeiro tesouro da Igreja é o Santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”[2]; com este primeiro ponto o presente estudo irá caminhar pelos escritos de Lutero a respeito da Ceia.
Em seu Sermão sobre o Venerabilíssimo Sacramento do Santo e Verdadeiro Corpo de Cristo Lutero ainda iniciando a sua vida como reformador da Igreja enfatiza que a Santa Ceia é um selo que garante e um sinal que aponta e dá a salvação, pois como dá o Corpo e Sangue de Cristo, assim confere a Salvação que significa. No entanto, ele ressalta que as palavras “Por vós” exigem uma fé pessoal e conferem o dom da Graça de Deus. Assim oferece uma interpretação prática sobre o que o corpo e o sangue significam na vida dos que deles participam na Santa Ceia. Fala a respeito da palavra grega “Synaxis” e da latina “Communio”, para demonstrar que na Ceia os crentes formam um só corpo com Cristo e com todos os Santos em comunhão. Deste modo, todas as propriedades espirituais de Cristo e todos os Santos são propriedades comuns de todos os que participam da Ceia com fé. Também todos os pecados são transferidos para Cristo, e se herda o seu amor, ou seja, existe alguém para carregar os pecados da humanidade. Por fim, Lutero afirma que tudo depende da fé, por isto lamenta que muitos fossem à Ceia sem fé, pensando no “Opus gratium opere operatum” (Uma obra aceitável por ter sido realizada), quando na realidade a Santa Ceia deve levar a um “Opus operantis” isto é, uma boa obra que faz agir na fé.[3]

Assim, se percebe nesta primeira grande obra de Lutero a respeito da Ceia, a grande importância que este Sacramento exerce no pensamento do Reformador, e como ele de fato, é Evangelho, Graça. Além disso, merece destaque a ressalva que ele faz para que aqueles que vão ao sacramento, devam ir com fé, visto que receber  sacramento sem fé, de nada se aproveita dele.
 
Ainda no início da Reforma na Alemanha, após escrever seu sermão sobre a Santa Ceia, Martinho Lutero desenvolve duas grandes obras a respeito deste sacramento já no ano de 1520; estes escritos, em combate à doutrina romana, juntamente com o sermão mencionado no tópico anterior, formam o primeiro grande bloco de escritos do reformador a respeito do Sacramento do Altar; e, com isso, é a base para se entender o pensamento de Lutero até por volta do ano de 1524.
O primeiro ponto de evolução de Lutero do sermão de 1519 para este de 1520, chamado de “Um sermão a respeito do Novo Testamento, isto é, a respeito da Santa Missa”, é o seu afastamento definitivo da doutrina romana da transubstanciação.
A respeito do conteúdo deste texto, se destaca a seção 12:

Em primeiro lugar, há o testador, que faz o testamento, Cristo. Em segundo lugar, há os herdeiros, aos quais é legado o testamento, e estes somos nós, os cristãos. Em terceiro lugar, temos o testamento em si, são as palavras de Cristo... Em quarto lugar, o selo ou marca distintiva é o sacramento, pão e vinho, sob o qual está seu verdadeiro corpo e sangue... É isso que o sarcedote declara quando ergue as hóstias, com o que não se dirige a Deus, mas a nós como se quisesse dizer: “Vejam, este é o selo e sinal do testamento, no qual Cristo nos legou a remissão de todo o pecado e vida eterna”... O qual confessamos que recebemos nele bens de Deus, e não lhe oferecemos sacrifício ou dádivas. Em quinto lugar, o bem legado, que é declarado pelas palavras, qual seja, perdão dos pecados e vida eterna. Em sexto lugar, o compromisso, memória ou celebração que devemos a Cristo, isto é, que anunciemos, ouçamos e contemplamos este seu amor e misericórdia... Assim também faz um testador secular, que lega algo a seus herdeiros, para deixar atrás de si um bom nome, estima e memória, para não ser esquecido.[4]

 

Nestas palavras então se percebe como o pensamento de Lutero estava caminhando, ainda com alguns termos agostinianos, por conta de sua herança, mas já abdicando totalmente do sacrifício da missa e enfatizando a questão de na Ceia do Senhor o comungante receber o perdão dos pecados e a vida eterna, sendo estes, os grandes proveitos do Sacramento do Altar.
Quanto à participação, Lutero não entra em detalhes, mas em todo o seu escrito, ressalta o fato de que a Ceia é para os cristãos. Como na época não havia a diversidade religiosa de hoje, todo aquele que fosse batizado estava apto a participar da Ceia.

Rosin, ao tratar este escrito afirma que este sermão sobre o novo testamento é, para Lutero, a “última vontade e testamento de Cristo, isto significa que tudo depende do que Cristo disse, e que o Sacramento é o que ele diz e dá o que ele diz.”[5] Ou seja, o reformador defende a Ceia como de fato ela é, sem a intervenção de doutrinas humanas como o sacrifício ou a transubstanciação, por exemplo.
Ainda sobre este sermão, Rosin destaca que neste tratado, Lutero “esclarece que a Ceia de fato, não é sacrifício, mas um Sacramento, um testamento. Algo que Cristo faz, que Ele dá”.[6] Ou seja, a Ceia não é algo da Igreja ou dos homens, mas de Cristo. Ele é o dono da mesa, e Ele é quem convida à mesa e também o que oferece.

Ainda outros dois escritos importantes a respeito da Ceia foram publicados em 1520.
No livro dirigido à Nobreza Cristã[7], Martinho Lutero “ataca a multidão de missas, e comenta... As missas são consideradas apenas como sacrifícios e boas obras  enquanto na realidade são sacramentos, assim como o Batismo e a Penitencia”.[8]
Já em seu grande escrito sobre o Cativeiro da Igreja[9], Lutero trata de como a Igreja transformou o Sacramento do Altar em um cativeiro, fazendo isso por meio “da retenção do cálice aos leigos e depois na doutrina da transubstanciação, e finalmente na ideia de que a missa é obra e sacrifício.”[10]

Desta forma, se percebe que neste período da vida do reformador, o seu grande problema é com a questão da Igreja ter feito da Santa Ceia uma mera obra humana, e é com isso que Lutero se preocupa em seus escritos; mais adiante ele terá outros desafios, que veremos posteriormente.
A respeito da retenção do cálice aos leigos, Lutero trabalhou aos poucos, sem ir de encontro à consciência dos cristãos, que para ele era algo que deveria ser tratado com bastante cautela e cuidado, visto que a consciência dos fiéis não deve ser flagelada ou deturpada. No entanto, após cerca de três anos de instrução sobre a comunhão sob ambas as espécies, Lutero recomendou em 1523, que se abstivessem do Sacramento aqueles que ainda se recusavam participar da Ceia sob ambas as espécies.[11]

Aqui se percebe o cuidado pastoral de Lutero, em primeiro instruir seus congregados a respeito do que se estava ensinando sobre a Ceia para depois, então, quando já entendessem aquela questão (no caso, a comunhão sob ambas as espécies), viessem a participar da Ceia dessa forma, e aqueles que, mesmo após essa longa instrução, não concordassem com o que estava sendo ensinado, Lutero então pede para se afastarem do sacramento. Assim temos aquele que podemos chamar de o primeiro “não” de Lutero à participação de determinados indivíduos na Ceia do Senhor; em resumo, por não crerem no que estava sendo ensinado sobre a mesma.
Ainda sobre o escrito “Do cativeiro Babilônico da Igreja”, Lutero enfatiza três cativeiros que foram criados no Sacramento do Altar.

Primeiro cativeiro desse Sacramento se refere a sua substância ou integridade, tirada pela tirania romana. Não é que pequem contra Cristo os que usam uma espécie, já que Cristo não preceituou usar alguma, mas o deixou ao arbítrio de cada qual dizendo: “Todas as vezes que o fizerdes, fazei-o em minha memória” (1 Co 11.23,25). Pecam, porém, os que proíbem dar ambas as espécies aos que querem fazer uso desse arbítrio. O Segundo cativeiro do mesmo sacramento é mais suportável, pois se refere à consciência. Contudo é extremamente perigoso tocá-lo e, mais ainda, condená-lo. Pois não é necessário, segundo Lutero, que a natureza se transubstancie para que a divindade habite corporalmente nela, a fim de que se tenha a divindade sob os acidentes na natureza humana. Enquanto ambas as naturezas permanecem íntegras é que se diz com razão: “Este ser humano é Deus, e este Deus é ser humano”. Se a filosofia não o compreende, a fé em verdade o compreende. Maior é a autoridade da palavra de Deus que a capacidade da nossa razão. O mesmo acontece no sacramento: para que haja verdadeiro corpo e verdadeiro sangue não é necessário que se transubstanciem o pão e o vinho, a fim de que tenhamos Cristo sob os acidentes. O Terceiro cativeiro desse mesmo sacramento é aquele abuso extremamente ímpio, por causa do qual sucede que atualmente na Igreja quase nada é mais do que a crença de que a missa é boa obra e sacrifício.[12]

Com estes pontos destacados, se resume a teologia de Lutero sobre o Sacramento do Altar até o ano de 1524, onde ele atacou diretamente a Igreja Romana, no entanto, apartir de 1525, Lutero já terá outros adversários, fortes e desafiadores.
 
Continua...
Helvécio José Batista Júnior
 


[1] Cf. SASSE. p. 17 – 24; 69 – 72.
[2] LUTERO, Martinho. Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências, 1517. Traduzido por Walter O. Schlupp. In. Obras Selecionadas. Vol I. Os primórdios (1517 – 1519). Ed. Sinodal, São Leopoldo, RS. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 1987. p. 27.
[3] LUTERO, Martinho. Um Sermão sobre o Venerabilíssimo do Santo e Verdadeiro Corpo de Cristo e sobre as Irmandades, 1519. Traduzido por Walter O. Schlupp. In. Obras Selecionadas. Vol I. Os primórdios (1517 – 1519). Ed. Sinodal, São Leopoldo, RS. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 1987. p. 425 – 440.
[4] LUTERO, Martinho. Um Sermão a respeito do Novo Testamento, isto é, a respeito da Santa Missa, 1520. Traduzido por Martin N. Dreher. In. Obras Selecionadas. Vol II. O programa da Reforma. Escritos de 1520. Ed. Sinodal, São Leopoldo, RS. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 1989. p. 260.
[5] ROSIN, Robert. Lutero, a Santa Ceia e Roma. In. BUSS. Paulo W. (Organizador). Comunhão e separação no Altar do Senhor. 2º Simpósio Internacional de Lutero. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 2009. p. 25.
[6] ROSIN, Robert. Lutero, a Santa Ceia e Roma. In. BUSS. Paulo W. (Organizador). Comunhão e separação no Altar do Senhor. 2º Simpósio Internacional de Lutero. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 2009. p. 26.
[7] LUTERO, Martinho. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da melhoria do estamento Cristão, 1520.
[8] SASSE. p. 75.
[9] LUTERO, Martinho. Do cativeiro Babilônico da Igreja, 1520.
[10] SASSE. p. 75.
[11] SASSE. p. 77 – 84.
[12] LUTERO, Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja, 1520. Traduzido por Martin N. Dreher. In. Obras Selecionadas. Vol II. O programa da Reforma. Escritos de 1520. Ed. Sinodal, São Leopoldo, RS. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. 1989.  p. 341 – 424.

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