segunda-feira, 10 de junho de 2013

O SACRAMENTO DO ALTAR (Parte III)


A SANTA CEIA NAS SAGRADAS ESCRITURAS[1]

 



De acordo com o relato de Atos, os primeiros cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” [2], ou seja, uma descrição de uma Comunidade Cristã, de crentes batizados. Isso é o que se pode determinar de acordo com o Novo Testamento, que em nenhum momento a Igreja Primitiva conheceu algum tipo de comunhão que não fosse de cristãos batizados, nunca uma comunhão aberta.[3]

Este fato se conclui por meio das palavras do Apóstolo Paulo em sua carta a Comunidade de Corinto, quando diz:

Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e sangue do Senhor... Quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si.[4]

 

Dessa forma, se expressa o cuidado do apóstolo com aqueles que vão participar da Mesa do Senhor. E aqui poderia surgir a dúvida sobre o que é de fato, discernir o corpo de Cristo, ao passo que a resposta é muito simples: discernir o corpo de Cristo nada mais é do que crer que na Santa Ceia são recebidos em, com e sob o pão e o vinho, o verdadeiro corpo de Cristo e o seu verdadeiro sangue.[5] Assim sendo, se conclui que alguém fora da Igreja Cristã de forma alguma confessaria a presença real de Jesus Cristo na Santa Ceia, o que reforça que somente membros batizados e instruídos participavam do Sacramento na Igreja Primitiva. Outro fato que reforça este argumento é o de que as celebrações eucarísticas se realizavam nas casas dos cristãos e não no templo ou na sinagoga, ou seja, ainda se tinha o resquício de que a Ceia era uma refeição familiar, íntima, que era realizada entre os irmãos.[6]

Com estas informações, se percebe, no mínimo, dois aspectos importantes no ensino dos apóstolos: o primeiro é que a Santa Ceia era uma refeição íntima, entre cristãos instruídos na fé, ou seja, entre “irmãos na fé”. O outro ponto era a preocupação e o cuidado dos apóstolos por aqueles que vinham à Mesa do Senhor, como Paulo argumenta a respeito do discernimento do corpo, do qual foi tratado anteriormente,  e ainda diz mais, “examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim, coma do pão, e beba do cálice.”[7]

Quanto à questão da dignidade ou indignidade de um participante da Ceia, com base nas palavras do Apóstolo Paulo para que o homem examine-se a si mesmo, Scholz argumenta:

Em que consiste essa indignidade, dentro do horizonte da situação em Corinto? Ela certamente tem a ver com amor cristão, ou, então, a falta dele. A situação descrita em 1 Co 11.20-22 é um flagrante atentado ao amor cristão. Mas Paulo dá um destaque especial àquilo que se pode chamar de “indignidade em termos de fé”, que aparece em 11.29,30. E aqui a questão não era que alguns não cristãos estavam querendo participar da Ceia. Tratava-se de cristãos, gente que se reunia na igreja (v.18), e que, na visão de Paulo, estavam “sem discernir o corpo”, ou, como fica explícito na NTLH, estavam comendo “sem reconhecer que se trata do corpo do Senhor”. Paulo não proíbe ninguém de participar da Ceia, mas também não declara que a Ceia é “para quem quiser, quem vier”. Ele insiste no examinar-se a si mesmo. Não requer perfeição, mas quer que os cristãos se examinem. Não diz em que âmbito eles deveriam fazer o exame, mas podemos deduzir que as áreas a serem examinadas são a fé e o amor[8]

 

No entanto também existem outras posições em relação a este texto do Apóstolo Paulo, por exemplo, Schneider argumenta o seguinte:

Não se pensa que cada pessoa deva auscultar seu coração para se conscientizar de pecados ocultos e não confessados, com o objetivo de resolvê-los como condição de uma participação digna e irrepreensível na Ceia do Senhor... Esse processo se tornou uma regra bastante difundida para a participação na Ceia e exclui aquelas pessoas das quais se pensam que não podem fazer uma confissão de pecados no nível de consciência desejado (por exemplo, as crianças)... Do mesmo modo, o comer e beber indignamente... Não resulta da falta de um criterioso exame do pecado individual, como se disso dependesse a dignidade da celebração eucarística. A celebração digna é aquela em que cada pessoa envolvida “leva em consideração o corpo de Cristo”, evitando tudo o que possa dividir ou desfazer a integridade do mesmo. Portanto a dignidade da celebração provém da presença do Senhor na Ceia e não da atitude de uma pessoa que dela participa. Indigna na comunidade de Corinto é a forma de celebração e não a condição pessoal de cada participante.[9]

 

Aulén, em seu estudo sobre este texto, afirma:

A participação na Ceia do Senhor é uma confissão de que o cristão pertence ao Senhor que vem ao seu encontro no Sacramento. Como tal, vincula-se o autoexame. Se falar em “ser digno e bem preparado”, a “dignidade” e a “preparação” consistem em permitir que Deus julgue a sua culpa e sua indignidade.[10]

 

Portanto, são esses os principais enfoques a respeito deste texto do Apóstolo Paulo. Por conta destas diferentes interpretações, se observa no mundo cristão as divisões a respeito dos critérios sobre quem pode ou quem não pode participar da Santa Ceia, o que deixa a seguinte questão: O Apóstolo Paulo em nenhum momento proibiu a participação na Ceia de alguém da Comunidade de Corinto, no entanto, ele em nenhum momento se dirige a pessoas de fora da comunidade neste assunto. Com isso se nota, o fato de a Ceia do Senhor é um ato cristão, realizado entre cristãos, o que não descarta o fato de também serem advertidos quanto à forma de como estão lidando com o Sacramento.

 


Em um trabalho que trate da Santa Ceia é válido destacar aquilo que pode ser chamado de polêmica a respeito do sexto capítulo do Evangelho segundo São João.

Muitas linhas teológicas defendem a opinião que neste relato bíblico temos uma descrição a respeito do Sacramento do Altar e com isso se promove grande fundamentação teológica com base nesta ideia.

Bartels destaca que “o sexto capítulo de João é muitas vezes visto como o centro do estudo e ensinamento a respeito da Ceia do Senhor”[11], e a respeito disso indica a posição de Johanners H. Emminghaus que afirma ter encontrado o ensino em João sobre a Eucaristia neste capítulo[12], fato que é reforçado pelo professor, também católico, Eugene Laverdiere, que acredita, ser o sexto capítulo do Evangelho de João, o ponto mais alto de toda a teologia eucarística no Novo Testamento.[13]

Este debate a respeito do sexto capítulo de João também pode ser encontrado com os Pais da Igreja. Por exemplo, Kelly traz um resumo interessante a respeito desta questão quando trata da controvérsia envolvendo a doutrina da presença real e da presença simbólica ou espiritual.

Eusébio de Cesaréia, por exemplo, embora geralmente satisfeito com a doutrina simbólica, também está pronto a deduzir, a partir de João 6, que aquilo que o Senhor disse a respeito de comer a sua carne e beber o seu sangue deve ser entendido num sentido espiritual[14]

 

Dessa forma se percebe que bem no início da história da Igreja Cristã já se utilizava o relato de João 6 para defender teses a respeito da Santa Ceia, ou seja, para alguns autores, este texto trata sobre a Ceia do Senhor.

Na época da Reforma da Igreja, esse assunto também foi discutido e até bastante difundido por alguns dos reformadores, entre eles, Zwinglio e Calvino:

Zwinglio não baseou sua doutrina a respeito da Ceia do Senhor nas palavras da instituição, mas sim com as palavras “para nada aproveita a carne” (Jo 6.63). Já Calvino disse que a Ceia do Senhor é um “banquete espiritual, no qual Cristo atesta que Ele é o Pão Vivo (Jo 6), onde nossa alma é abençoada e recebe a imortalidade verdadeira”[15]

 

O reformador alemão Martinho Lutero, no entanto, discorda totalmente dessas afirmações, alegando que o sexto capítulo de João não possui nada a respeito da Ceia do Senhor e por isso não pode ser usado como base bíblica para este Sacramento.[16]

Hermann Sasse divide o discurso de Jesus sobre o Pão da Vida em duas partes, a primeira do versículo 35 até 51a, onde reflete a base bíblica para a doutrina da alimentação espiritual de Cristo na Fé; a segunda parte, de 51b até 58, onde mostra que o pão celeste já não é a pessoa de Cristo, mas a sua carne.[17]

Com base nisso, complementa que “Jesus é de fato, o pão do céu; a sua carne é o pão do céu e o verdadeiro comer deste pão ocorre na fé. Já o comer o seu corpo e beber o seu sangue ocorre na Ceia do Senhor”.[18]

Em fim, Bartels atesta que aqueles “que defendem que em João 6 o discurso de Jesus não se trata da Santa Ceia, dizem, ao invés disso, que ali, Jesus está fazendo um convite para um comer e beber espiritual em si”.[19]

Aulén, no entanto, tem a seguinte opinião a respeito de João 6:

A presença de Cristo na Ceia do Senhor, segundo João, é a presença do Senhor vivo e vivificador e do seu Espírito. Mas esse Cristo celestial não é outro senão o que “veio em carne”... João quer dizer que a presença de Cristo na Ceia do Senhor é tão real quanto a sua presença com os discípulos durante os dias do seu ministério terreno.[20]

 

Essa é uma polêmica que reside na história da Igreja há mais de um milênio, e dentro da Igreja, como foi destacado acima, existem aqueles que defendem esta passagem como se tratando da Ceia do Senhor e outros que afirmam que ela nada diz a respeito deste tema.  No entanto, é importante ressaltar essa controvérsia neste trabalho, pois foi um ponto que sempre esteve presente nas discussões a respeito do Sacramento do Altar, e ainda é utilizado para defender dogmas, por exemplo, da Igreja Católica, a respeito da distribuição sob uma espécie aos leigos.

 

 

Continua...

Helvécio José Batista Júnior


Juninho_vox@hotmail.com



[1] Texto baseado na seguinte obra: BATISTA JR, Helvécio José. A Participação na Santa Ceia: Enfoques Teológicos e Históricos como subsídio para o Cuidado Pastoral. ULBRA – Universidade Luterana do Brasil. Canoas, RS. 2012.
 
[2] Atos 2. 42
 
[3] WITTENBERG, Martin. Comunhão Eclesiástica e Comunhão de Altar a luz da História da Igreja. Traduzido ao inglês por John Bruss. Traduzido ao Português por Eugenio Dauernheimer. Canoas – RS, 2005.
 
[4] 1Coríntios 11. 27 e 29
 
[5] COMMISSION ON THEOLOGY AND CHURCH RELATIONS OF THE LUTHERAN CHURCH - MISSOURI SYNOD. Admission to the Lord's Supper: Basics of Biblical and confessional teaching. St. Louis: LCMS, 1999. p. 19 “Discerning the body requires faith that Christ’s true body and blood are received in, with, and under the Eucharistic bread and wine” (Tradução do Autor)
 
[6] CHUPUNGCO. Anscar J. La Eucaristia. p. 83
 
[7] 1Coríntios 11. 28
 
[8] SCHOLZ, Vilson. Sacramento do Altar: Convidados. In. Revista Igreja Luterana, 2004/02. Seminário Concórdia, São Leopoldo – RS – Volume 63. p. 356.
 
[9] SCHNEIDER, Nélio. 1Corintios 11. In. Revista Estudos Teológicos, 1996. Nº 02. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo – RS. p. 122.
 
[10] AULÉN, Gustav. A Fé Cristã. Traduzido por Dírson G. Vergara dos Santos. ASTE. São Paulo, SP. 1965. p. 340.
 
[11] BARTELS, Ernest. Take eat, Take drink – The Lord’s Supper through the Centuries. Concordia Publishing House. St. Louis, MO – USA. 2004. p. 30. “John's sixth chapter is sometimes viewed as the center of his teaching regarding the Lord's Supper”. (Tradução do Autor)
 
[12] BARTELS. p. 30.
 
[13] BARTELS. p. 30.
 
[14] KELLY. p. 336.
 
[15] BARTELS. p. 31 “Zwinglio did not base his doctrine of the Lord's Supper on the words of institution but on the words "The flesh profiteth nothing" (6.63). Calvin said that the Lord's Supper is "a spiritual feast, at which Christ attests that he is the living bread, Jn. 6, on which our soul feed unto true and blessed immortality”. (Tradução do Autor).
 
[16] LUTERO. Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja, 1520. Traduzido por Martin N. Dreher. In. Obras Selecionadas. Vol II. O programa da Reforma – Escritos de 1520. Ed. Sinodal. São Leopoldo, RS. Ed. Concórdia. Porto Alegre, RS. 1989. p. 346 – 350.
 
[17] BARTELS. p. 33.
 
[18] SASSE apud. BARTELS. p. 34. “Sasse remarks that "here two lines of thought about the bread of life stand next to each other that at first seem to contradict each other". He explains that both are true of Jesus. He is the bread from heaven. His flesh is the bread of heaven. Eating Him as the true bread of heaven occurs in faith. And eating Jesus' flesh and drinking His blood happens in the Lord's Supper” (Tradução do Autor).
 
[19] BARTELS. p. 35. “Those who hold that in John 6 discourse Jesus was not speaking of the Lord's Supper  say that instead it is a spiritual eating and drinking to which Jesus invites” (Tradução do Autor)
 
[20] AULÉN. p. 334.

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