sábado, 8 de junho de 2013

O SACRAMENTO DO ALTAR (Parte II)


A INSTITUIÇÃO DA CEIA DO SENHOR[1]

 


Herança Hebréia:

O Culto Cristão de um modo geral herdou uma série de sinais e termos da cultura e culto hebreus em seus primórdios, sendo que isso pode ser observado no transcorrer da história da Igreja Cristã até os dias atuais. Da mesma forma no Sacramento do Altar, como parte do culto e vida cristãos também se percebe algumas semelhanças com práticas anteriores à sua instituição por Jesus Cristo, em especial, as refeições hebréias.

Em primeiro lugar se destaca que o comer e beber, mesmo nas religiões antigas, era de suma importância no que diz respeito à comunhão entre as pessoas e também à comunhão com Deus. Martini ressalta que:

Pão e vinho, reconhecidos e recebidos como dádiva de Deus, frutos do trabalho árduo, essenciais para a sobrevivência, serviam, juntamente com a água, de meios para criar e fortalecer a comunhão.[2]

 

Nas refeições do povo hebreu o pão e o vinho eram vistos como elementos sagrados, assim como todo aquele momento, dessa forma os irmãos comiam e bebiam num sentido de ações de graça, o que era visto por eles como um ato em gratidão a Deus e na presença de Deus. Além disso, o que chama a atenção é que somente participavam desses momentos a própria família e alguns amigos íntimos, ou seja, não era algo aberto ou realizado de qualquer forma.[3]

            A última Ceia de Jesus é vista por muitos estudiosos dentro do contexto de uma dessas muitas refeições já existentes e comuns na cultura hebréia. Por exemplo, a Haburah, que era uma refeição comunitária que o povo realizava para celebrar a sua confissão de fé em Deus[4]; também o jantar do Shabat, que era uma refeição semanal de renovação, onde se lembrava de Deus como o Criador. Outra refeição importante para o povo era a Pesach, que era mais de caráter familiar, onde os hebreus comemoravam a liberdade conquistada por meio da fuga da escravidão do Egito (Ex. 3. 7 – 9), além disso, também nessa refeição se reavivava na memória das pessoas a presença de Deus em meio à vida e os conflitos do tempo presente[5]. Ou seja, se celebrava a ação de Deus para com o seu povo.

Dentre essas refeições que foram apresentadas, o estudioso Gregory Dix aponta a última ceia de Jesus como uma Haburah, e destaca o fato que de tanto Jesus quanto os seus discípulos já estavam acostumados e familiarizados com esta refeição[6].

Em resumo, dessa herança hebréia no culto cristão e especialmente na Santa Ceia, White destaca:

Em nenhuma outra parte as raízes judaicas do culto cristão são tão importantes – ou tão complicadas – como no caso da Eucaristia... Todo o culto sacrifical se desenvolvera como um meio de se relacionar com Deus como nação e de alcançar a comunhão com Deus enquanto indivíduos... Afinal, a Última Ceia foi obviamente uma refeição sacra, mas assim também o eram todas aquelas numerosas refeições que Jesus compartilhou com seus discípulos... Jesus usou palavras e ações especificadas de um padrão familiar para declarar que o Messias efetivamente chegara... Enfim, Jesus usou o ápice de ano judaico para estabelecer a Nova Aliança, mas o fez em termos do culto antigo.[7]

 

A instituição de Jesus Cristo:

Neste contexto das refeições do povo hebreu encontramos a última ceia de Jesus com os seus discípulos, onde é bem provável que o Mestre tenha se comportado como qualquer hebreu de seu tempo se comportaria na função de presidir uma refeição[8] e, independente de qual das refeições tenha sido feita naquela noite anterior a crucificação de Cristo, o fato é que aquele foi um momento especial onde Ele faz uma nova aliança pelo seu próprio Sangue[9]. Assim Martini diz a respeito:

O encontro de Jesus com os discípulos, na véspera de sua crucificação, não foi um acontecimento isolado. Insere-se na linha histórica das reuniões e ceias que ele comumente realizou com diferentes pessoas, em momentos especiais.[10]

 

De acordo com o relato dos evangelistas Mateus[11], Marcos[12], Lucas[13] e também do apóstolo Paulo[14] tem-se a descrição de como foi aquela noite e as palavras que Jesus proferiu diante de seus discípulos: “Tomai, comei; isto é o meu corpo... Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos para a remissão dos pecados[15]. Estas palavras mostram que a Santa Ceia não é um sacrifício que se oferece a Deus, mas sim, é Deus em Cristo Jesus entregando o seu próprio Corpo e Sangue em favor da humanidade para o perdão dos pecados[16].

Lutero destaca que as palavras da instituição são a promessa de Cristo, onde Deus se revela gracioso e concede o perdão dos pecados e a vida eterna por causa da obra de Cristo na cruz: “promessa que foi confirmada pela morte do Filho de Deus... Em seu próprio sangue para perdão dos pecados... Cristo... O verdadeiro cordeiro pascal”.[17]

Algo que chama a atenção quando se trata da Última Ceia de Jesus é o fato de ele ter levado Judas e ele ter ceado junto com os demais apóstolos, mesmo Jesus já sabendo que ele o trairia[18]. No entanto ao observar as palavras de Jesus naquele momento se percebe que Ele leva os seus discípulos a um autoexame, a refletir sobre o que lhes dissera a respeito da traição. Quanto a isso, Brunner escreve:

O “um de vocês” de Jesus é uma palavra da Lei de Deus que tinha a intenção de trazer os discípulos a convicção e autoexame, e, assim, prepará-los para a recepção correta do Evangelho da Ceia do Senhor... Um “venham todo mundo” a Ceia do Senhor barato, sem qualquer convite ao arrependimento, não realiza nenhum serviço de amor a congregação e profana o corpo de Cristo.[19]

 

Quanto à participação de Judas, Gerhard escreve:

Sem dúvida, Jesus deixou Judas participar com todos, como podemos concluir de Lc 22.20-23, mesmo tendo Judas já recebido o dinheiro da injustiça. Este grave pecado, no entanto, somente Cristo conhecia e ninguém dos seus discípulos, pois eles perguntaram entre si: Quem seria dentre eles o que estava para fazer isto (Lc 22.23). Assim, após a séria advertência para que desistisse do pecado, Cristo admite Judas à Santa ceia, ao mesmo tempo com os outros. Assim, a exemplo de Cristo, um ministro da Igreja não pode excluir alguém da Santa Ceia cujos pecados ainda estão ocultos, mas deve advertir seriamente os indignos a não participarem indignamente e chamá-los ao arrependimento.[20]

 

            Com base nos relatos bíblicos nota-se que a Última Ceia foi uma refeição íntima[21], como uma refeição familiar, onde Jesus Cristo deu seu Corpo e Sangue sob o pão e o vinho somente a seus discípulos, os quais haviam sido instruídos na fé. Quanto a esta questão, Dr. Martinho Lutero escreve:

Assim fez Cristo: Deixou que a pregação fosse multidão a dentro sobre cada um, bem como também depois os apóstolos, de sorte que todos a escutaram, crentes e incrédulos, quem a apanhava, apanhava-a. Assim também nós devemos fazer. Todavia, não se deve atirar o sacramento as pessoas multidão a dentro. Ao pregar o Evangelho, não sei a quem atinge, aqui, porém, devo ter para mim que atingiu aquele que vem ao sacramento; aí não devo ficar em dúvida, mas ter certeza de que aquele, a quem dou o sacramento, aprendeu e crê corretamente o Evangelho.[22]

 

Da mesma forma, Allmen argumenta:

A Palavra se destina a todos, mas a Comunhão é reservada exclusivamente aos que não só ouviram essa Palavra, mas a receberam e guardam.[23]

 

Assim, a Última Ceia mostra que foi uma refeição íntima entre “amigos”, nesse contexto, de pessoas da mesma fé, onde Jesus a instituiu e a entregou a seus discípulos para perdão dos pecados e comunhão entre aqueles que se reúnem em volta da Mesa do Senhor. Por isso, teologicamente, o Sacramento do Altar sempre foi entendido como um momento de comunhão de seus participantes[24], ou seja, algo que liga cada um dos que vão à Mesa do Senhor.

 

 

Continua...

Helvécio José Batista Júnior


 

 



[1] Texto baseado na seguinte obra: BATISTA JR, Helvécio José. A Participação na Santa Ceia: Enfoques Teológicos e Históricos como subsídio para o Cuidado Pastoral. ULBRA – Universidade Luterana do Brasil. Canoas, RS. 2012.
 
[2] MARTINI, Romeu R. Eucaristia e Conflitos Comunitários. Ed. Sinodal; São Leopoldo, RS. 2003. p. 33.
 
[3] WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. 2ª Edição – IEPG e Ed. Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005. p. 177.
 
[4] MARTINI. p. 35.
 
[5] MARTINI. p. 39, 41.
 
[6] DIX, D. Gregory. The Shape of the Liturgy. London: Dacre Press, 1960. p. 54.
 
[7] WHITE.  p. 176 – 178
 
[8] MARTIMORT, A. G. A Eucaristia – A Igreja em Oração; Vol. II – Vozes, Petrópolis, 1989. p. 41.
 
[9] MARTIN, Ralph P. Adoração na Igreja Primitiva; Ed. Vida Nova, São Paulo – SP, 1982. p. 135.
 
[10] MARTINI, Romeu R. Eucaristia e Conflitos Comunitários. Ed. Sinodal; São Leopoldo, RS. 2003. p. 45.
 
[11] Mateus 26. 26 – 30
 
[12] Marcos 14. 22 – 26
 
[13] Lucas 22. 14 – 20
 
[14] 1Corintios 11. 23 – 25
 
[15] Mateus 26. 26 – 28
 
[16] SASSE. p. 75
 
[17] LUTERO, Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja, 1520. Traduzido por Martin N. Dreher. In Obras Selecionadas. Vol II. Ed. Concórdia, Porto Alegre, RS. Ed. Sinodal, São Leopoldo, RS. 1989. p. 362 – 363.
 
[18] Marcos 14. 18
 
[19] BRUNNER, Frederick Dale. Matthew. Vol. II. The Church Book Matthew 13 – 28. Word Publishing. Dallas, London, Vancouver, Melbourne. 1990. p. 951 “Jesus ‘ one of you’ is a Word of the Law of God intended to bring disciples under conviction and self-examination and so to prepare them for the right reception of the gospel of the Lord’s Supper… A cheap ‘Y’ all come!’ to the Lord’s Supper, without any invitation to repentance, performs no service of love to the congregation and profanes Christ’s body”. (Tradução do Autor)
 
[20] GERHARD. In WALTHER. Carl F. W. Teologia Pastoral. Tradução de Horst Kuchenbecker. 2011. p. 110.
 
[21] DIX, D. Gregory. The Shape of the Liturgy. London: Dacre Press, 1960. p. 50.
 
[22] LUTERO (S.l., XI, 616) apud. MUELLER, John Theodore. Dogmática Cristã – Um Manual Sistemático dos Ensinos Bíblicos. Traduzido por Martinho L. Hasse. Ed. Concórdia, Porto Alegre – RS; Ed. Ulbra, Canoas – RS; 2004. p. 502.
 
[23] VON ALLMEN, J. J. O Culto Cristão – Teologia e Prática; 2ª Ed. ASTE, 2006. p. 153.
 
[24] ELERT, Werner. Eucharist and Church Fellowship in the First Four Centuries. Concordia Publishing House. St. Louis, MO – USA; 1966. p. 27.

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