terça-feira, 11 de junho de 2013

O SACRAMENTO DO ALTAR (Parte IV)


O SACRAMENTO NO INÍCIO DA IGREJA CRISTÃ[1]

 


O Sacramento do Altar no Didaqué:

O Didaqué é um documento histórico que ajuda a conhecer um pouco mais a respeito do início da Cristandade, pelo fato de ser uma das fontes mais antigas da Igreja. Deste modo, verificar o que este texto diz a respeito da Santa Ceia é olhar para um dos primeiros escritos após o período apostólico e perceber o que era ensinado e como era praticado o Sacramento do Altar entre os primeiros cristãos.

Gonsalves Salvador atesta para o fato de que no início da era cristã “somente os crentes batizados e em plena conexão com a Igreja, tinham então, acesso a Mesa do Senhor”[2], o que é reforçado pelas palavras do próprio Didaqué:

Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: Não deis as coisas santas aos cães![3]

 

O que nos chama a atenção é este cuidado para que a Santa Ceia não fosse dada para qualquer pessoa, pois pelos textos estudados dá-se a entender que a Ceia era vista como um sacrifício. Assim, o participar indigno acarretava um sacrifício impuro.

Reuni-vos no dia do Senhor para a fração do pão e agradecei (celebrai a eucaristia), depois de haverdes confessado os vossos pecados, para que vosso sacrifício seja puro. Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro não se junte a vós antes de se ter reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado. Com efeito, deste sacrifício disse o Senhor: Em todo o lugar em todo o tempo se me oferece um sacrifício puro, porque sou um grande rei – diz o Senhor – e o meu nome é admirável entre todos os povos.[4]

 

A Igreja Primitiva e os Pais Apostólicos:

Ao estudar este período da história do cristianismo, Allmen atesta que “em toda a Igreja Primitiva na há nenhum indício de celebração de domingo sem a Eucaristia”[5]; com isso se percebe o valor que o Sacramento do Altar recebeu nos primeiros anos da Igreja Cristã.

Ao tratar da Igreja Primitiva White destaca, por exemplo, a Igreja de Jerusalém:

Os membros da Igreja de Jerusalém partiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com singeleza de coração (...). Paulo ameaça com doença e morte as pessoas culpadas de comer e beber indignamente, isto é, sem discernir o Corpo do Senhor na Comunidade.[6]

 

Pelo fato de a Eucaristia ser algo presente na vida dos cristãos, alguns Pais Apostólicos se manifestaram a respeito do Sacramento, no intuito de preservar pura a doutrina bíblica do mesmo. Isso não significa que acertaram, no entanto, deve ser visto como a busca de homens piedosos para um bom entendimento dos mistérios das Escrituras, dentre eles, a Santa Ceia. Por isso, de acordo com Santo Inácio de Antioquia, a participação na Santa Ceia era um fator decisivo para se determinar se alguém era cristão ou não.[7] Assim, tem-se neste relato novamente a importância que o Sacramento exercia na vida da comunidade cristã, seria, além de muitos outros aspectos (alguns que já foram tratados e outros que ainda serão neste trabalho), um distintivo para os cristãos, ou seja, participar da Santa Ceia era afirmar ser um cristão.

Santo Inácio, ao tratar deste assunto lembra os docetistas:

Os docetas abstêm-se da Eucaristia e da Oração porque não admitem que a Eucaristia seja a carne de Jesus Cristo nosso Salvador, que sofreu por nossos pecados, ao qual o divino Pai ressuscitou.[8]

 

Os Pais Orientais e a Igreja Oriental:

A respeito da Ceia do Senhor nos Pais Orientais, Kelly afirma:

Embora reproduzam verbalmente o realismo convencional, eles tem uma perspectiva alterada pela tendência à alegoria e pela absorção platonizante no mundo espiritual subjacente aos fenômenos.[9]

 

Quanto a isso, se percebe alguns enfoques sobre a Ceia; como, por exemplo, Clemente afirma que “beber o sangue de Jesus é participar de sua incorruptibilidade; o vinho eucarístico é uma mistura do Logos com a substancia material, e aqueles que o bebem são santificados no corpo e na alma”.[10]

Também Gregório de Nazianzo, que falou “do pão e do vinho consagrados como símbolos ou tipos do grande mistério”.[11]

Dessa forma, Kelly conclui:

O que em geral parece ser uma referência concreta à Eucaristia dissolve-se numa alegoria do verdadeiro conhecimento gnóstico; alimentar-se da carne e do sangue do Logos significa apreender o poder e a essência divinos.[12]

 

Além disso, outro fato importante que se destaca na teologia dos Pais Orientais, é a crença que, após a consagração, os elementos da Eucaristia deixam de ser simplesmente pão e vinho, ou seja, elementos terrestres, e passam a ser também, celestiais; o que provoca também uma mudança naquele que participa da Ceia.

Isto é reforçado nas palavras de Irineu:

Pois assim como o pão terrestre, sobre o qual recai a invocação de Deus, deixa de ser pão comum e se torna Eucaristia, constando de duas coisas, terrena uma e celeste outra, assim também nossos corpos, participando da Eucaristia, deixam de ser corruptíveis e possuem esperança da Ressurreição Eterna.[13]

 

Assim, também argumenta Gregório de Nissa, ao ensinar que “os participantes da Ceia do Senhor estão de fato, unidos e incorporados com Cristo”.[14]

Enquanto isso, Orígenes foi mais claro e específico:

Cristo deu seu corpo e seu sangue para os cristãos... Consumimos pão que, em virtude da oração, tornou-se corpo, um elemento santo que santifica aqueles que o usam com um objetivo correto... O pão consagrado, é o próprio Logos, que se tornou carne e é nosso alimento autêntico.[15]

 

No entanto é valido ressaltar que até os dias atuais a Igreja Oriental não tem um dogma explícito a respeito da Eucaristia, a não ser uma liturgia oficial adotada em toda a Igreja Oriental quanto ao seu conteúdo doutrinário e suas práticas relativas, afinal de contas, a liturgia, na Igreja Oriental, exerce um valor muito forte, sendo a base de muitas doutrinas estabelecidas pela Igreja.[16]

Sasse traz uma parte dessa liturgia que ajuda a entender a doutrina adotada na Igreja Oriental:

Na prece da consagração, se suplica a Deus: “Faze este pão ser o precioso corpo de teu Cristo... e o conteúdo deste cálice o precioso sangue do teu Cristo mudando-os (metabalon) mediante teu Espírito Santo”.[17]

 

Por causa disso a Igreja Oriental nunca duvidou ou questionou a presença real, mesmo se a questão de como isso pode ser possível não é respondida, simplesmente se crê que após a consagração o pão é mudado em corpo e o vinho em sangue.

Quanto ao momento em que essa mudança nos elementos ocorre, Atanásio escreve:

Vereis os levitas trazendo pães e um cálice de vinho, e colocando-os sobre a mesa. Enquanto as orações ainda não são feitas, aquilo é mero pão e mero cálice. Mas depois que as sublimes e maravilhosas orações são recitadas, o pão torna-se o corpo e o cálice torna-se o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo... Quando as grandes orações e as santas súplicas são enviadas para o alto, a Palavra desce sobre o pão e sobre o cálice, e estes se tornam Seu corpo.[18]

 

Quanto a essa conversão dos elementos visíveis, que também é defendido por Gregório de Nissa[19]; João Crisóstomo se aprofunda mais nesta doutrina e fala de comer Cristo, até de fincar os dentes em sua carne.[20]

 

Os Pais Ocidentais e a Igreja Ocidental:

Na teologia dos Pais Ocidentais, a doutrina do Sacrifício na Ceia do Senhor se manteve bastante viva e presente no decorrer da história. Uma das bases para tal doutrina se encontra em Cipriano, um dos Pais Latinos da Igreja Ocidental:

Se Jesus Cristo nosso Senhor e Deus, pessoalmente, é Sumo Sacerdote de Deus Pai; se, primeiramente, se ofereceu a si mesmo em sacrifício ao Pai, ordenando que isso seja feito em sua memória, com toda a certeza o sacerdote, imitando o que Cristo fez, desempenha fielmente o papel de Cristo e oferece ao Pai um sacrifício verdadeiro e completo, toda vez que o oferece na forma como Cristo ofereceu.[21]

 

Ainda, a questão do sacrifício é reforçada com Jerônimo, ao afirmar que “a dignidade da liturgia eucarística procede de sua associação com a paixão; ela não é um memorial vazio, pois a vítima do sacrifício diário da igreja é o próprio Salvador”.[22]

Ao passo, que o ensino de Ambrósio de Milão é ainda mais explicito como Kelly destaca:

Agora, vemos coisas boas numa imagem e nos apegamos as coisas boas da imagem. Vimos o principal dos sacerdotes vindo até nós; nós O vimos e O ouvimos oferecendo seu corpo por nós. Nós, que somos sacerdotes, imitamo-lO da melhor maneira possível, oferecendo sacrifício pelas pessoas, as quais sem dúvida alguma são frágeis em seu mérito, mas tornam-se honradas mediante aquele sacrifício. Pois embora Cristo não mais pareça estar oferecendo sacrifício, ainda assim Ele próprio é oferecido no mundo em todos os lugares onde o corpo de Cristo é oferecido. De fato, Ele é visto ofertando em nós, pois é sua Palavra que santifica o sacrifício que oferecemos.[23]

Apesar disso, no Ocidente, a identificação dos elementos consagrados na Ceia (pão e vinho) com corpo e sangue de Cristo sempre foi destacada como uma presença sacramental; por isso Hipólito fala “do corpo e sangue pelos quais a Igreja é salva, e Tertuliano descreve com regularidade o pão como o corpo do Senhor”.[24]

Por isto, Sasse pôde afirmar:

Nenhum teólogo da Igreja Antiga jamais duvidou que, conforme as palavras da instituição, o pão consagrado é o corpo, e o vinho consagrado é o sangue de Cristo.[25]

 

Agostinho enfatiza também o caráter sacrificial do Sacramento, como Kelly destaca, ao citá-lo, quando ensina que “um sacrifício verdadeiro, é toda e qualquer obra realizada com o objetivo de estabelecer nossa santa união com Deus... O sacrifício visível é o sacramento, ou seja, o símbolo sagrado do sacrifício invisível”.[26]

Desta forma, se chega à questão de quem poderia ou não participar da Ceia do Senhor: este sinal externo e/ou sacrifício ao Senhor. Assim, Justino afirma que “O culto eucarístico continua sendo uma reunião exclusiva de pessoas batizadas”.[27] Ou seja, novamente se percebe que a grande preocupação dos Pais e Mestres da Igreja ocidental, assim como foi na Igreja Primitiva, era de que somente os crentes batizados participassem da Ceia do Senhor. Como era um sacrifício a Deus, não podia participar qualquer um, mas apenas aqueles que estavam unidos com Cristo, e esta união se dava pelo batismo. Desta maneira seguia-se o que o Didaquê ensinava, a respeito do Sacrifício da Ceia, para que este não fosse profanado (Como foi relatado acima).

Ainda Justino ressalta a respeito da teologia da Eucaristia que “ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros os nossos ensinos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo ensinou”.[28] Ou seja, aqui se tem duas grandes preocupações com os participantes da Santa Ceia. Primeiro que sejam batizados e segundo que creiam nos ensinamentos de Cristo e vivam conforme estes. Os Pais da Igreja reforçam o argumento do homem examinar-se a si mesmo, como Paulo ensinou em sua Epístola à comunidade de Corinto.[29]

Quando a Igreja confessa a presença real (Sem entrar no mérito de como isso ocorre, visto que será trabalhado posteriormente) de Cristo na Santa Ceia ela defende a participação na Mesa do Senhor somente para aqueles que crêem nessa doutrina, pois participar sem fé naquilo que se ensina, como Wittenberg[30] explica, é hipocrisia, o que leva às palavras de Paulo que diz que “quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si”.[31]

 

Continua...

Helvécio José Batista Júnior



 

 



[1] Texto baseado na seguinte obra: BATISTA JR, Helvécio José. A Participação na Santa Ceia: Enfoques Teológicos e Históricos como subsídio para o Cuidado Pastoral. ULBRA – Universidade Luterana do Brasil. Canoas, RS. 2012.
 
[2] GONSALVES SALVADOR, José. O Didaquê – O Ensino através dos Doze Apóstolos; Junta Geral de Educação Cristã da Igreja Metodista, São Paulo – SP, 1957; p. 51.
 
[3] CATECISMO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS. Didaquê. Prefácio, tradução do original grego e comentário de Urbano Zilles. Ed. Vozes. Petrópolis, RJ. 9ª Edição. 2009. p. 28.
 
[4] CATECISMO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS. Didaquê. Prefácio, tradução do original grego e comentário de Urbano Zilles. Ed. Vozes. Petrópolis, RJ. 9ª Edição. 2009. p. 34.
 
[5] VON ALLMEN, J. J. O Culto Cristão – Teologia e Prática; 2ª Ed. ASTE, 2006. p. 148.
 
[6] WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão; 2ª Edição – IEPG e Ed. Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005; p. 179 – 180.
 
[7] INÁCIO de Antioquia. In. ARNS, Paulo Evaristo.  Cartas de Santo Inácio de Antioquia : Comunidades Eclesiais em formação. Introdução, tradução do original grego e notas por Dom Evaristo Arns. 3ª Edição. Ed. Vozes. Petrópolis, RJ. 1984. Aos Efésios 5. 12.
 
[8] BETTENSON, Henry. Editor. Documentos da Igreja Cristã. Traduzido por H. A. Simon. ASTE, 1998. (Inácio, Ep. Ad Smyr. 6) – p. 134.
 
[9] KELLY, J. N. D. Doutrinas Centrais da Fé Cristã. Traduzido por Márcio L. Redondo. Ed. Vida Nova. São Paulo, SP. 1993. p. 160.
 
[10] CLEMENTE apud. KELLY. p. 161.
 
[11] BARTELS, Ernest. Take eat, Take drink – The Lord’s Supper through the Centuries. Concordia Publishing House. St. Louis, MO – USA. 2004. p.  94. “Gregory of Nazianzu spoke of the consecrated bread and wine as symbols and types of the great mysteries, but ascribed saving virtues to them”. (Tradução do Autor)
 
[12] KELLY. p. 161.
 
[13] BETTENSON. (Irineu, Adv. Haer. IV. XVIII. 5). p. 135.
 
[14] BARTELS. p.  94. “Gregory of Nyssa taught that those partaking in the Lord's Supper are united with and incorporated into the God-man” (Tradução do Autor).
 
[15] KELLY. p. 161.
 
[16] Cf. SARTORIUS, Bernard. As grandes religiões do mundo – Igreja Ortodoxa. Trad. Manuel Ferreira da Silva. Ed. Verbo. Lisboa, POR. São Paulo, SP. 1982.
 
[17] SASSE. p. 27.
 
[18] Frag. Ex serm. Ad baptiz. (PG 26, 1325) in. KELLY. p. 336.
 
[19] KELLY. p. 337.
 
[20] KELLY. p. 338.
 
[21] BETTENSON. (Cipriano, Epístola LXIII. 14) p. 137, 138.
 
[22] KELLY. p. 344 – 345.
 
[23] Cf. Enarr. In os. 38.25. in KELLY. p. 345.
 
[24] KELLY. p. 159 – 160.
 
[25] SASSE. p. 26.
 
[26] KELLY. p. 345.
 
[27] Cf. James  F. WHITE, Introdução ao Culto Cristão, p. 181; Cf. Justino, Apologia 1. 65: “Nós, porém, depois de assim lavado, conduzimos o que creu e se agregou a nós, para junto dos que se chamam irmãos...”.
 
[28] JUSTINO, Mártir. Santo Justino de Roma: I e II Apologias: Diálogo com Trifão. São Paulo, SP. Paulus, 1995 (Patrística). p. 82.
 
[29] 1Corítios 11. 28 e 29.
 
[30] WITTENBERG, Martin. Comunhão Eclesiástica e Comunhão de Altar a luz da História da Igreja. Traduzido ao inglês por John Bruss. Traduzido ao Português por Eugenio Dauernheimer. Canoas – RS, 2005. p. 03.
 
[31] 1Coríntios 11.29.

2 comentários:

  1. Olá irmão,

    Parabéns pelo artigo. Excelente sua pesquisa e a desenvoltura como entrelaça os pais da Igreja.
    Para os leitores em geral deixo a ressalva de que a opinião de Irineu e Atanásio quanto ao momento em que o pão e o vinho tornam-se corpo e sangue de Cristo não confere com o que as Escrituras Sagradas afirmam, pois em nenhum momento elas dão a entender que isto acontece na consagração e sim que ao comer o pão e o vinho recebemos o corpo e o sangue de Cristo.
    Irineu e Atanásio foram grandes teólogos e contribuíram muito para o desenvolvimento do cristianismo, mas o leitor há de reconhecer que não falaram inspirados por Deus e portanto são passíveis de erros como todos os seres humanos.


    Um abraço,
    Pastor Elvis

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    1. Olá pastor,

      Muito bem lembrado. E obrigado pelo comentário e contribuição.

      Grande abraço
      Bênçãos de Deus!

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